quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Coisas Boas...


O dia começava cedo, bem cedo. Ainda o sol se espreguiçava da dormência da noite, já Adélia revolvia a vida por dentro e por fora num frenesim de força e vontade que contagiava tudo e todos.
Era um tempo difícil. Trabalhava longe, em casa das senhoras ricas, às vezes levava também a filha pela mão e percorria ruas e vielas como quem passa de um mundo para o outro. Para trás já tinha ficado a janta pronta, as camas feitas, a roupa estendida e outra de molho em sabonária para ser lavada à noitinha.
Naquele passo certo e corrido, Maria João, a menina, era levada quase a reboque.
- Porque não vamos de camioneta mãe? - Perguntava ela, sentindo ao fim de poucos metros o cansaço nas pernas franzinas. Adélia ás vezes sentia-se angustiada por sujeitar a filha àquele esforço, mas o que podia fazer? Não conseguia esconder-lhe a realidade e embora sonhasse com um futuro melhor, era preciso ensinar Maria João a enfrentar qualquer adversidade sem grandes lamúrias ou lamentações.
– Para irmos de camioneta gastamos quatro escudos por dia e é preciso poupar filha! Vais ver que chegamos num instante e depois vais ter todo o dia para descansar.
Os quatro anos de Maria João, faziam com que não pensasse noutra verdade para além daquela que a mãe lhe dizia, agarrava-se a ela com a mesma força com que segurava a sua mão e juntas atravessavam a vida.
De todas, a mais bonita era a casa da D. Mimi. Ficava num 8º andar de um edifício tão alto que quase arranhava o céu. Tudo brilhava naquele luxuoso apartamento; os móveis de madeira exótica, o chão encerado e lustroso com carpetes bonitas, cortinados e reposteiros de tecidos nobres e cores sóbrias, pratas e porcelanas dispostas numa decoração requintada. Na cozinha, espaçosa e arejada, os tachos e panelas luziam pendurados e pairava no ar um aroma doce que se misturava depois com o cheirinho do café que Adélia fazia para os senhores, mal chegava. Quando as meninas se levantavam, a mesa da sala já estava magestosamente pronta para o pequeno almoço. A Senhora já tinha dado as ordens para a refeição seguinte que deveria ser servida à uma hora em ponto, isto depois de Adélia se desfazer em agradecimentos e desculpas por ter tido a permissão, mais uma vez, de levar a filha consigo, assegurando que ela não perturbaria nem os seus afazeres e muito menos a vivência dos donos da casa.
Maria João interiorizava com atenção todas as conversas, jeitos e gestos, sentada a um canto da cozinha, num banco de madeira pintada. Nervosamente, ou porque a imponente figura da D. Mimi a intimidasse, ou porque assumia a postura formal e servil da mãe, ela esticava a saia de xadrez pregueada para que lhe cobrisse os joelhos, tal qual lhe recomendava sempre o pai. Depois era o reboliço. Era a dona da casa que tocava na sala o sininho, dando sinal para que Adélia comparecesse sem demoras. Era o Senhor General, que Maria João apenas conhecia pelo som austero da voz, que dizia: “ Tenha modos Nônô!” ou “ Fifi, a menina ainda não lavou os dentes?”. Era a menina Nônô, a mais pequenina, que vinha à cozinha pedir à Adélia que lavasse o vestido da boneca ou lhe fizesse o totó e olhava curiosa para a menina, dizendo-lhe simplesmente “ Olá”. Ao fim de algum tempo, a calma e o silêncio iam regressando ao ritmo da porta da casa que se abria e fechava até todos terem saído.
Ficavam depois só as duas, mãe e filha, naquele que era para Maria João um palácio e para Adélia uma casa de muito trabalho. Depois de saborearem um delicioso café, feito com as borras já coadas do café anterior, Adélia começava a labuta; limpava, arrumava, lavava, esfregava, polia, estendia, passava e cozinhava com a mestria do saber fazer que dez dos seus vinte anos de vida, lhe haviam ensinado enquanto servia em casa de senhores. Maria João, sempre de volta da mãe, aprendia com ela os gestos mágicos que transformam as casas em portos seguros, asseados e deliciosamente confortáveis.
Só havia um sítio onde ela se perdia como criança; o quarto das meninas. Tudo era tão lindo! A colcha rosa fofinha que cobria a cama pintada de côr branco-pérola . O abajur do candeeiro que era afinal o guarda-sol da boneca que agarrada a ele pendia do tecto. A caixinha de musica com a bailarina em pontas que ela fazia rodar dando-lhe corda, atrevidamente, assim que a mãe se distraía. E as bonecas, tantas bonecas! Grandes e pequenas, como ela nunca vira senão ali. Adélia deixava-a sempre mexer nelas, tocar-lhe nos cabelos, ajeitar-lhes os vestidos. Sabia que existia uma infância roubada no olhar da filha e que aquele era um dos poucos momentos que permitia o seu reencontro. Apesar de saber que a filha tinha todo o cuidado do mundo, ela repetia sempre o mesmo aviso, com a firmeza das coisas inquestionáveis:
- Volta depois a pôr a boneca no sítio e não estragues nada!
Voltavam depois à cozinha e era hora de preparar o almoço. Pouco depois regressavam todos e também o reboliço e o som do sininho, com a Adélia a colocar o avental branco bordado para se apresentar prontamente à chamada. Ah! E no banquinho de madeira, lá ficava novamente a Maria João sentada, à espera que se fizesse novamente silêncio.
Almoçavam na cozinha o delicioso repasto das sobras da refeição dos senhores que eram devolvidas nas travessas, ás quais se juntava por vezes um pouco mais, que de tanta fartura, havia ficado no tacho.
À hora da sesta, Adélia estendia uma saca de serapilheira limpinha no chão da marquise. Maria João adormecia ainda a sentir o beijo e a carícia da mãe, a ouvir o tilintar dos pratos e copos que ela lavava e a pensar na manhã, cheia de coisas boas que tinha vivido.
( Este texto foi publicado em outra das minhas aventuras bloguistas. Na foto se encontram as protagonistas desta história. Sei que o local onde foi tirada, a casa da tia Gracinda, despertará em muitos de vós, tal como em mim, inumeras recordações que decerto servirão como fonte inspiradora de outras escritas. )

4 comentários:

Paulo disse...

Simplesmente divinal! Tive o privilégio de conhecer a Tia Adélia e ainda me lembro dos saborosos ovos estrelados que me fazia.
Um relato digno de figurar num qualquer livro fosse ele um romance, uma biografia ou outro tipo qualquer.
A casa da Tia Gracinda também me traz muitas recordações quiçá para mais tarde escrever.

cálita disse...

Que história tão tão linda...Tão cheia de vida e de sentimentos...QUE BELEZA.Fez-me lembrar momentos da minha infancia na casa das "senhoras".

Gabriela disse...

Querida prima joão, que bom que me leste os pensamentos. Ia sugerir-te que partilhasses com o resto da família esse teu apontamento tão lindo. Não vivi essa experiência das "senhoras" como tão bem descreves e na qual a Carla também se revê. Vivi outras que quando tiver tempo tentarei também partilhar com todos.

Otília Leitão disse...

1. Antes de mais, gostaria de saber porque o autor tem apagado alguns comentários mais críticos.Discordo plenamente porque a vida tem muitas cores. Assim, sem critica nem dissonância, o blogue corre o risco de ser um local de lamechices.

2. Esta página de vida que a Janinha escreveu, tem tanto de beleza quanto de dramático. Sei bem o que é isso de "senhoras". Um parte da minha adolescência teve o "peso" dessas senhoras que gostam de fazer dos outros seus subalternos. As crianças delas jamais dormiriam numa sarapilheira que as outras por serem dos "escravos" podem dormir. São menos crianças do que as delas.
O caso da Maria Adélia, minha irmã, da qual guardo com grande tristeza e remorso pela impotência, o seu olhar suplicante em rosto dissecado pela doença que a vitimou, mulher jovem que não viveu. Terão sido muito poucos os seus momentos de felicidade. À luz dos conceitos de hoje e também de alguns avanços já verificados no seu tempo, a minha irmã Adélia foi uma vítima em toda a sua dimensão. Primeiro, menina, no desabrochar da adolescência obrigada pelas circunstâncias da vida, a trabalhar. Depois vitima da ignorância e ausência de acompanhamento familiar esclarecido. Creio que todos os seus irmãos, incluindo eu, apesar de ser a mais nova, e de na época não ter qualquer peso, nos devemos penitenciar pela forma espartana com que foi tratado o seu caso de gravidez precoce, como se fosse um "crime" sempre pronto a vexar, sempre que os ânimos dos outros se exaltavam. A sua curta vida,de muitas e injustas humilhações (onde nem faltou a violência doméstica),foi uma luta pela sobrevivência, dentro de um espartilho de preconceitos de uma família preconceituosa, numa sociedade austera e estigmatizante.
Paz à sua alma e que as suas filhas saibam honrar o seu nome e rejeitar idênticas humilhações.
Otília Leitão. PS:(Espero que o autor deste blogue, não limpe este comentário sob pena de eu considerar censura).